quarta-feira, 28 de abril de 2010

CINE TAPUIA - Iracema sertaneja: caminhos do cinema

Por Sâmila Braga



Como seria a virgem dos lábios de mel, se nascida no sertão, ainda indígena, passeante, mambembe, num cinema que vagueia pelas comunidades, enchendo os olhos daqueles que não teriam acesso à sétima arte? O pai cego, Araquém (Rodger de Rogério) orienta a filha pelas estradas da vida e das cidades. O que não funciona muito bem, pois o velho bon vivant estrangeiro, colonizador português - Martim (Luiz Carlos Salatiel)- larápio ludibria a pobre moça. Ela, e mais vinte como Iracema (Myrlla Muniz). Enquanto a barriga cresce, Iracema continua com o pai a cantarolar belas e populares cantigas, que são trilha para os filmes exibidos pelo pai. Essa é a roupagem que Rosemberg Cariry dá ao romance de José de Alencar. Uma tentativa de mostrar que o cinema cearense pode sim ter sensorialidade rústica e qualitativa. Mesmo com a pobre interpretação do casal da trama, o filme transporta o leitor ao ambiente cultural e de foco documentário e emotivo que o diretor parece querer passar. Já a forte atuação de Rodger de Rogério dá o tom do romance, todavia não em semelhança a majestosa obra alencarina.

O tom de tragédia ministrado no enredo se mistura aos aspectos crítico- documentais, dando uma relevância gigantesca a obra. Culturalmente, Cine Tapuia é proeminente no sentido de que carrega o expectador ao espaço de homenagem ao cinema brasileiro através da valorização regional. Quando usa-se de trechos de obras de Eisenstein, Glauber, Kuleshov e do próprio Rosemberg Cariry, combinados aos contextos nos quais esses filmes são projetados, o diretor considera a verdadeira essência do cineclube, o caráter da coletividade. Além disso, na linha que se traça, os encontros com movimentos e comunidades reais acham-se na ficção. A luta diária,contempla-se na parada no acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem terra). Os depoimentos são legitimadores.



Ao longo dos 82 minutos de filme, as cenas de mostra da cultura cearense percorrem desde a festa do pau, aos shows em Quixadá e culminando com as romarias em Canindé. Até o nascimento solitário de Moacir, filho da virgem enganada, típico brasileiro, fruto da miscigenação enganadora, a trama perde qualquer traço de semelhança com a obra a qual pretendeu dar nova leitura. A cena final, cíclica, no mar de horizonte-sem-fim no qual o cego vê e se perde na imensidão do que imagina pelo que escuta do mar. É marca do incessante, onde o céu que pertencera ao sertão, agora é do oceano, nas vistas do cego. A velha lenda do alagar, que o sertão vai virar mar é enovelado pelos muitos mitos de vida de quem da região vive e sonha.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

CORISCO E DADÁ - Do sol, da terra, do sertão: o amor de Corisco e Dada

Por Sâmila Braga


Ódio no rapto da família, da inocência. Sérgia Ribeiro da Silva. Menina – treze anos - teve que virar mulher. Do sol, do cangaço, do diabo louro. “Que foi? Parece que viu o tinhoso”. Havia. A boneca no saco, colocada pela brutalidade de Corisco. Não conhecia a vida. Conheceu o sofrimento. O amor desabrochava quando necessário. No mais, ficava feito mandacaru, guardado, leitinho, pra escorrer doce na seca mais forte. As correrias, os quatro filhos perdidos nas balas dos macacos de volante ou pela vontade do Senhor. Só três sobreviveram. Calor de Sertão. O Beato abençoara um deles. Não funcionou por muito tempo. Dada tratou de engrossar os couros. Acampada pelas securas do agreste, nômade, coração andarilho. Corisco gostava dela, do seu jeito, mas gostava. Ensinara Dada a ler, escrever e atirar. Ficou por aquela vida, a bichinha, rainha dele no fundo, via-se. Engrossou mesmo o couro. Vestiu-se mulher do bando. Tornou-se, como todas as outras e outros. Era amiga, comadre de Bonita, a Governadora do Sertão. No sonho de uma noite vislumbrou o anjo-mar – coisa distante por ali – de vestes de rede. As cabeças de seus compadres, chefes, nas mãos do anjo. Dada pressentira. Queria vida melhor. Preferiria as verduras do centro do país à ressequidão do Nordeste sem rumo.


Havia tempo que os macacos buscavam por quem agora era seu amor. Mesmo máquina da morte, de mãos secas, cujo brilho dos olhos perdera junto com as tantas vidas que tirou. Mesmo separando-se do bando de Lampião., permaneceram amigos, compadres. Na teima por ficar dali, por ali e com isso, o tiro. Não se entregou. Fugiram para uma casinha nos galhos secos, com a menina, afilhada. Novamente a volante, os tiros. Dada não deixou que tirassem a cabeça fora, como as dos outros cangaceiros, de Maria, Virgulino. Arrancou a própria perna. Precisava dar algo a eles. Somente anos depois Dadá consegue enterrar a cabeça do bruto amado. O corpo fora enterrado em Jeremoabo, na Bahia.


A fotografia poética e os versos que compõem o roteiro rústico e real de Cariry embelezam a aridez do sertão que do bege quase fica verde. Um filme que faz palpável a quentura nos olhos dos personagens. Rosemberg homenageia um mito popular, que às vezes permanecia à sombra do mito maior, Virgulino. O romance bruto do cangaço. Tinham corações arranhados pelos muitos mandacarus dos caminhos, mas seguiam. Coragem. Com as mortes de Lampião e Corisco, o cangaço deixa de passear pelas estradas secas do Nordeste. Some uma tradição.