sexta-feira, 22 de outubro de 2010

OSAMA – A menina-sociedade que olha por janelas de dor, sob a burka-opressão

Por Sâmila Braga




Ver Osama sob a ótica ocidental judaica-cristã é se encher de indignação perante às atrocidades de um regime cruel sobre vidas, principalmente femininas. O período, no qual os Talibãs assolaram o Afeganistão, marcou ainda mais os rostos afegãos já tristes e empobrecidos econômica e culturalmente. O Regime Talibã chicoteou a dignidade de um povo, que já não bastasse a guerra civil e as invasões russas, perdeu seus homens e deixou suas mulheres reprimidas.

Ser mulher nessa época e país era ter de se submeter ao uso obrigatório da burka e da companhia permanente de um homem. Era não poder trabalhar para sustentar a própria família que mandou seus homens pra guerra. Mais que mulher, a criança que encarna Osama, é apenas menina. Metonímiza-se. Transveste-se de menino, Osama. Anula sua feminilidade, quando corta os cabelos, num sofrimento que desenha em seus olhos um mal maior. O diretor Barmak aponta claramente como as diferenças de gênero se extinguem quando a menina estuda e trabalha como homem. É aceita apenas por ser menino, mas ainda é uma garota.

Siddiq Barmak escreveu, produziu, dirigiu e editou o filme. “Toda a história é uma combinação de histórias reais”, sentencia. Ele deu roupagem islâmica à velha história de repressão contra a mulher, que tem de encarnar a figura masculina, denunciando a igualdade de direitos. Ao contrário de outras tramas semelhantes – como a trabalhada por Walt Disney, em Mulan, ou da própria Joana D’arc, mártir histórica – a menina não chega a ir pra guerra. O conflito, que trava, é interno. Tem de abolir-se fisicamente para ter o que comer. Trabalha em uma venda, até ser convocada para o treinamento militar, na Madrassa. Perde-se no ritual masculino que nunca a pertenceu e quase é delatada. Torna-se mulher pela menarca, se concretiza mulher aos olhos de todos. Descobrem seu “crime”. É julgada. O perdão parece deveras mais penoso que a própria execução. É entregue ao Mulá como esposa, que já possui três outras mulheres.

Com uma fotografia inebriante de Ebrahim Ghafori, os vidros embaçados e os enquadramentos mágicos e apontadores dão ao filme a sinergia denunciadora de sofrimento que o diretor propõe. Tendo sido o primeiro longa-metragem filmado após a queda do regime opressor, grita ao mundo o potencial cinematográfico do Afeganistão. País, que desde o século que terminava, produzira o ínfimo numero de 40 filmes, entre longas e curtas.

Além da fotografia, os demais elementos de cena, as interpretações amadoras e firmes, a música de Mohammed Reza Darvishi dão à tragédia as expectativas do diretor, que como ele descreve são “que a dor, a tristeza e o sofrimento de nossa nação choquem os expectadores do mundo, para que possam mudar a consciência das pessoas e seus pontos de vista”. Debruça-se sobre a cultura religiosa que se apropria do discurso do livro sagrado com uma interpretação fixa, unilateral, fundamentalista. E contesta. Uma contestação-menino com mãos de garota.

Como o próprio diretor expõe, a busca por atrizes para o filme foi árdua. As marcas do regime ainda permaneciam nas almas e mentes afegãs. Acabou topando, dois dias antes do início das filmagens, com Marina Golhahari, a menina que viria a protagonizar Osama. Viu nela a dor de um passado, que seria projetado não só nas telas como no seu olhar cativante e revelador.

Burkalizar as mulheres, aprisionando-as num regime de falso moralismo, é mais do que aparentemente uma prisão individual, é, contudo, expressão maior de uma coação nacional, institucionalizada. O choque para o expectador ocidental se dá entre os dois universos culturais. Um, com excesso de moralismo, que visa preservar e resguardar a menor parte do corpo feminino, com a criação de órgãos públicos como o Ministério para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício e da Imoralidade. De outro, uma sociedade que expõe o corpo livremente, em sensualizações naturalizadas, até entre crianças, na música, no cinema, na publicidade e na televisão. É a burka que briga com o micro-shortinho de funk. Essa procura da verdadeira essência da mulher é apenas um fator étnico? Onde estará a verdadeira liberdade de expressão, vestimenta, comportamento? É uma boa questão para reflexões. Osama traz à tona o universal, o habitual, sob uma bela história. Veste a inocência de acusação política. Dá vida a Osama.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

VALSA COM BASHIR - Juntando retalhos de uma memória de dor

Por Sâmila Braga



Um novo gênero, já trabalhado por Marjane Satrapi em Persépolis. Podem chamar de graphic novel, documentário-animação, ou simplesmente de real-desenhado em movimento. É nesse formato que Valsa com Bashir desenvolve sua trama. O diretor israelense Ari Folman vai desencantando lembranças de um passado de tanta dor que sua mente fez questão de apagar.

Um jovem de 19 anos, junto com tantos outros, matando, ferindo e destruindo. A Guerra do Líbano. Ari anunciou na internet que lançaria o filme. Cerca de cem pessoas queriam dar-lhe depoimentos. Ele acredita, que na tentativa de também livrarem-se, despejarem aquelas lembranças-sofrimento. Emparelha algumas entrevistas, do lado israelense. Auto-reconstituição. Contudo, mais do que isso, busca um filme jovem e antiguerra.

As primeiras cenas do filme dão a explicação. O amigo esclarece como a memória pode fabricar informações, mesmo da infância distante, preenchendo lacunas que podem nunca ter existido. Ou, deletar informações dolorosas para que a vida siga sem traumas. O tema é retomado mais a frente, quando a especialista em pós-trauma, Zahava Solomon, explica como um jovem criou um mecanismo para isolar-se de todo aquele horror da guerra. Ele imagina que tudo é como um filme, e que vê os momentos passarem atrás de uma lente fotográfica.

Uma das fotografias impactantes, que quebra sua câmera imaginária, é a de um jóquei com várias carcaças de cavalos. Talvez ai trace-se um paralelo entre o limite do sofrimento. E caiba a indagação de até aonde vai a crueldade humana. Onde estará sua racionalidade, ou mesmo emoção? A cena onde o foco está no olho do cavalo morto refletindo o homem de sombra triste pode ser espelho disso.

Outro aspecto que auxilia no transporte do expectador para os diversos ambientes é a trilha sonora. Max Ritcher trabalha com o punk rock, dando a devida jovialidade à obra. É quase como se tudo aquilo fosse um vídeo-game. Ou quando usa música lenta, terna, na cena do pomar, onde a criança explode o tanque e logo em seguida é morta por centenas de tiros. A iluminação desta cena impressiona pelos focos de luz combinados ao som calmo. O slow-motion co-habita com os demais elementos dando uma áurea de torpor ao momento. Num misto de obstrução, sonolência e letargia.

A música também é destaque na cena que materializa o título do filme. Quando o soldado Frenkel metralha, rodopiando “durante uma eternidade ou só um minuto”, com o pôster gigante do líder israelense cristão – Bashir - de fundo, por entre os tiros, ele valsa. A valsa com Bashir.

Durante os 90 minutos, a busca por lembranças do massacre de Sabra e Shatila, revela que os soldados, carregam as vestes de vítimas tanto quanto os milhares de civis palestinos que tiveram seus amados mortos. Do particular para o universal, Ari Folman consegue delinear equivalências relevantes. Como quando refere-se ao seu pai, na Segunda Guerra Mundial. Ou quando equipara o drama dos campos de concentração judeus aos campos de refugiados palestinos.

Para quem gostou da película que conseguiu tratar de um tema tão sujo e pesado como a guerra com desenhos impressionantes, fortes,oníricos, a editora L&PM traz mais. Mesmo sem os sons enternecedores, uma HQ, com ilustrações do brilhante David Polansky – animador do filme –está nas bancas. Ela tem 120 páginas e custa R$46,00.