segunda-feira, 23 de maio de 2011

CRONICAMENTE INVIÁVEL – Cliques sobre uma realidade brasileira fragmentada: um retrato um pouco míope

Por Sâmila Braga



“Pra que perder tempo interpretando a realidade pras pessoas entenderem? Só pra fingir que eu entendo melhor? Melhor só registrar os fatos e deixar a interpretação pra depois”. Esse é o momento de desistência de montagem do país pelo personagem narrador intelectual Alberto. É por meio dele que, Sérgio Bianchi e Gustavo Steinberg, resolvem contar e costurar a trama dos personagens do Brasil cronicamente inviável.


Lançado à época da comemoração de 500 anos do descobrimento do Brasil, Cronicamente Inviável ensaia um redescobrimento do país. Tira a máscara da civilidade e a questiona, uma máscara tão tênue e ao mesmo tempo tão opaca que as pessoas não enxergam. Não quer comover puramente para ganhar prêmios, como outros filmes da mesma época. Revela, a partir da trama e do emaranhado de relações dos personagens, o drama em um contexto alegórico.


Caem do filme indícios de um Brasil incluído na pós-modernidade. Já no início, as latas de lixo em frente o restaurante, são representantes da compreensão da reciclagem como forma de consciência ecológica, mas que ao mesmo tempo, é confrontada com a insensibilidade diante da fome, problema social de maiores proporções. Ou seja, na visão burguesa a inclusão de pedaços ínfimos da modernidade no país é suficiente, problemáticas maiores tem a solução retardada.


Em outros momentos, também é possível reparar a alusão a civilidade. Como quando o economista entra no táxi e pede que o motorista respeite o semáforo. Ou quando, no segundo atropelamento, a mulher se diz cumpridora das leis, e grita não ter culpa ou responsabilidade sobre a vida da criança mendiga que agoniza no chão.


“Eu não tenho culpa”, poderia ter sido o nome do filme, já que é nesse ponto que a película tenta evidenciar a culpabilidade de todos sobre a caótica situação brasileira pós-moderna. Só que é igualmente aí que Cronicamente Inviável peca. Evidencia o conformismo, o desregramento regrado e a responsabilidade desviada, por meio de infinitos estereótipos. Nesse retrato cítrico brasileiro, o diretor diz pontuar os clichês esquizofrênicos, cínicos e otimistas, mas reforça alguns espectros, não sei se intencionalmente.


É feliz ao mostrar os conflitos sociais, étnicos, culturais, em ataque aos mitos reforçados cotidianamente pela ideologia dominante e recriminar o achar da existência de uma cultura nacional homogênea, na qual todos defendem seu modo de viver como perspectiva de integração e desenvolvimento. Todavia, faz uma crônica, não inviável, mas alegórica demais, que ataca, com uma fotografia mediana, sob uma ótica pequeno-burguesa e muitas vezes limitada. Nada de positivo é considerado.


Visceralmente cinematográfico, no falso documentário, o oprimido assume o papel de opressor. Se não é papel do cinema apontar soluções, não é também papel mostrar os lados divergentes e não somente o caos e os aspectos negativos? A exemplificação disso se mostra na cena em que um grupo de trabalhadores do campo organizados, alusão ao MST (Movimento Sem Terra), é trazido como desestabilizado e sem direção. Há aí uma crítica vazia aos movimentos sociais. Desconsidera com isso a relevância das intervenções da sociedade civil organizada.


Volta-se aí à questão dos estereótipos. Muitos takes poderiam ser analisados separadamente. Os discursos dos oprimidos e/ou dominados, se colocamos por esse viés, é trazido acompanhado de características ruins e de um cunho pejorativo. Na cena em que duas mulheres negras se dizem discriminadas, essas agem de maneira neurótica, e nitidamente se passa a imagem de que estão erradas e paranóicas. Pode o filme questionar com isso, o fato de que por passar por diversas situações de preconceito, o negro acaba por internalizá-lo, vendo-o onde não existe? Tal questionamento não fica claro.


A mesma falta de coerência se manifesta em outros personagens. O intelectual critica e aponta a sociedade e seus aspectos conflituosos, mas ao fim é descreditado por se inserir nessa lógica natural do trambique. O índio, que fala lentamente, não defende a igualdade, como possibilidade de reestabilização, mas sua cultura como perspectiva da integração e construção da identidade nacional. Sulistas, tanto a estudiosa, como o fazendeiro, são sempre separatistas, acreditando no trabalho como forma de desenvolvimento e progresso, mesmo que esse seja explorador.


Os operários são passivos, conformistas, manejáveis, assumindo discursos, sem qualquer crítica ou inaceitação. Uma bela cena a respeito desse último ponto é a tomada em que o garçom Adam faz um discurso anti-patrão. Aí, o filme levanta uma questão relevante, o terrorismo. “Num é violência, é terror”, propõe Adam aos operários na rua.


A violência, para o filme, parece ser a única característica comum à todas as regiões do país. Já que essas possuem uma diversidade gigantesca, não podendo ser abarcada em integridade pelas correntes idealizadoras de uma identidade nacional brasileira unificada e sem subversão. Seja essa violência esboçada na brigas, assaltos, pela polícia, ou mesmo a violência contida na fome ou no desrespeito com o mais fraco. “Despedir não tem graça, divertido é humilhar”, conclui Luís, dono do restaurante onde se passa parte do enredo.


Como montagem de um panorama, onde as culturas competem entre si, as cenas aparentemente banais, esquetes unificadas e costuradas, parecem ser anunciadoras de um mal já sabido para olhos anestesiados pelo cotidiano.


“A felicidade é uma perfeita forma de dominação autoritária”, descreve o escritor observador Alberto. Ao som do axé baiano ele elucida o conceito de entorpecimento das massas para manutenção da pobreza. "Homens e mulheres podem ser computadorizados, e transformados em robôs, sim- mas eles também podem se recusar a isso", pontua Herbert Marcuse em Ecologia e Crítica da Sociedade Moderna. E essa recusa não é mostrada em Cronicamente Inviável. Oprimidos são mostrados como bandidos ou coitados. E opressores como principais interessados em manter a ordem vigente.


A personagem carioca, esposa caridosa, tem atos de solidariedade. Na entrega de brinquedos, metáfora que exprime o remorso inconsciente que as classes dominantes parecem ter, Ana Alice sugere se livrar da culpa. O filme aclara e desmistifica o imaginário do país fruto da miscigenação harmônica e desprovida de conflitos. Explícita que, muito pelo contrário, o Brasil se originou a partir de um emaranhado de resistências formadoras da nação. Levanta ainda, como alguns indivíduos até hoje, cada um a seu modo, querem recuperar essa pseudo unidade e identidade nacional.


Na cena final, uma mendiga, persona conjunto das opressões (pobre, negra, mulher, e, provavelmente, nordestina) reza uma canção de ninar ludibriadora para o filho. Como quem não tem perspectiva e diz “vamo ser um pobre, mas um pobre honesto”. Justifica e assume a ideologia dominante como forma de se conformar e não sofrer mais ainda com as mazelas que a oferecem. É o arremate da inércia, de quem domina e de quem é dominado, a reflexão final sobre o que fazer quando os problemas se naturalizam tanto. Cronicamente Inviável é um filme pra chocar a classe média. O povo já vive inviavelmente.


quarta-feira, 4 de maio de 2011

TERRA ESTRANGEIRA – O não-lugar físico, psicológico, econômico: a fuga do Brasil dos anos 90


Por Sâmila Braga


Até 1990, os malefícios do capital e da economia liberal iam afetando gradativamente a população brasileira. Foi só com o presidente playboy, de rosto jovem e cínico, que as garras do neoliberalismo se cravaram nitidamente nos corações de todo um povo, de uma só vez. Foi o confisco monetário da década de 1990. Olhos e corações se apertaram, quando a TV exibiu a então ministra da Economia. Zélia Cardoso, a confirmar o roubo vestido de política, realizado pelo governo Collor.

É nessa época que se passa Terra Estrangeira, renorteando o Cinema Brasileiro, então meio perdido. A produção luso-brasileira, dirigida por Walter Salles e co-dirigida por Daniela Thomas, ganhou inúmeras premiações, dentre elas, o Prêmio Margarida de Prata (Brasil), o Prêmio Golden Rosa Camuna (Itália) e o Grand Prix do Entrevues (França).

A trama usa a vida de Paco (Fernando Alves Pinto) para ir costurando o enredo e a argumentação. Sua mãe (Laura Cardoso), uma costureira espanhola que sempre cuidou do filho sozinha, cai de um enfarto ao saber que perdeu suas economias de toda uma vida para o Governo Federal. Paco, desamparado, recebe a proposta de viajar para Portugal, vendo aí mais próxima a oportunidade de conhecer a terra de sua mãe, sonho que ela alimentara e economizara para lá retornar.

As cenas em preto e branco são usadas como recurso de destaque da crise no país. O estudante, de 21 anos, aceita a proposta de levar um violino, cujo conteúdo desconhece. Continha diamantes para o tráfico internacional. Ao chegar na Europa conhece Alex (Fernanda Torres), também brasileira, namorada de um músico traficante. A moça, meio envelhecida pelos trabalhos, anseios frustrados e saudades do Brasil, já está cansada do amor destrutivo que vive com o namorado Miguel (Alexandre Borges).

Paco e Alex se conhecem após o assassinato de Miguel, e se envolvem. Compartilham a solidão na terra estrangeira e a falta de perspectiva de retorno para sua terra pátria. Sob uma iluminação distinta e uma fotografia privilegiada, o amor do casal nasce. O sofrimento os une, como na cena em que se abraçam, tendo ao fundo o navio encalhado. Momento digno de um fado português, já que não podem partir, nem querem ficar, tal qual o navio.

O sentimento do casal é regado por Vapor Barato, música de Jardes Macalé, em alusão a desesperança de uma geração cujos pais viveram uma ditadura militar e o exílio, e que agora fogem de um país sem rumo, revestido de uma falsa democracia. Embora não se prenda às questões políticas, dá margem para a reflexão. Tenta se firmar porém, no problema da imigração brasileira, pincelando a questão do contrabando.

O mar, ao mesmo tempo, é ícone da liberdade e caminho-relação entre os países que no passado foram metrópole e colônia. O navio ali encalhado, talvez referência a um Portugal periférico na Europa e à brasileiros periféricos em Portugal, vindos de um Brasil também periférico na economia mundial. Esses prendimentos dos personagens ao seu país de origem, com suas identidades culturais, constroem uma presente desterritorialização.

O atravessar do limite Portugal/Espanha, na cena em que Alex carrega no carro Paco, baleado e quase sem vida, é a materialização do rompimento da fronteira. Narrativa e espaço dialogam e se emprestam pedaços durante todo o filme.

Alguns críticos sinalizam Terra Estrangeira com ares de cinema noir, apresentando a busca por uma caracterização da realidade social brasileira, com trechos a la road movie. E não se pode negar a contribuição estética, narrativa e conceitual que a película imprimiu no cinema brasileiro contemporâneo. Deixou rastros que são seguidos e calçam obras até hoje.