Por Sâmila Braga
Durante os 107 minutos do longa, Godard vai relacionando fatos. De um lado, a reinterpretação da história mais conhecida pelos cristãos. De outro, o estudo sobre a origem da vida por um estudioso, cientista. Tendo, ambas as histórias como plano de fundo o amor, os dois relacionamentos são totalmente distintos, mas, como mostram algumas cenas, vivem os conflitos inerentes da relação humana entre um casal.
Vindo do céu, todavia de uma forma mais moderna do que o clássico arcanjo, Gabriel (Philippe Lacoste) desembarca no aeroporto de Genebra, acompanhado da astuta garotinha (Manon Andersen). Pega o táxi do jovem Joseph (Thierry Rode) e ruma para o posto de gasolina do pai de Marie (Myriem Roussel), onde a garota trabalha. Lá, ele faz a Anunciação à ela. Virgem, e dedicando seu amor apenas à Joseph, Marie não entende sua gravidez. O namorado, a principio reluta, porém acaba aceitando o nascimento do menino Jésus.
Paralelamente a essa história, um professor de ciências, com ideias subversivas, se relaciona com uma de suas alunas, travando sempre com ela, discussões profundas sobre a origem da vida na Terra. “Uma inteligência anterior programou a vida”, inquieta-se. O professor argumenta que passou a pensar assim a partir da assustadora inteligência que vê possuir os computadores.
Trasa-se um confronto/comparação entre a velha dicotomia ciência versus religião. As histórias só se encontram na cena em que o casal de amantes, professor e aluna, pegam o táxi de Joseph. E ele, alucina ver Marie.
O jogo de cenas que Godard utiliza dá formato magistral à película. Ao mesmo tempo em que propõe uma reavaliação da mitologia cristã encarnando os sacros personagens em pessoas comuns, e acrescentando ao filme as informações de perspectiva de futuro nas vozes do professor que encarna a ciência, mescla elementos da natureza aos discursos. A cada hora, a existência de Deus, ou uma força maior que originou a vida, é posta em cheque ou afirmada nas falas, que são seguidas de quadros do sol. Este, sempre entrevisto, seja entre nuvens, entre arbustos de árvores, ou mesmo, oculto sob as montanhas.
Já a lua, aparece associada à fecundidade cheia de pureza, à gravidez de Marie, como em tempos ancestrais. Astro historicamente feminino, a lua círculo faz associação direta à barriga que cresce da garota, e que, por sua vez, guarda o filho de Deus.
“E o amor, seu idiota?.. Amor...”, vocifera Gabriel depois de dar um tapa em Joseph. É como se clamasse, daquela forma violenta e tão contemporânea, para que ele entendesse o real sentido das coisas, o quê de mais importante as pessoas tem esquecido. Isso é confirmado pelas falas da garotinha, antes dessa cena, quando ela afirma, “Ele quer saber de tudo! Como todo mundo!”.
Retratando a complexa relação entre corpo e espírito – “A alma tem um corpo?”, pergunta Marie ao médico, e ele logo responde: “É o corpo que tem uma alma!”- , Godard questiona a espiritualidade no mundo moderno. Marie, posta diante do ceticismo da Modernidade, se vê desamparada. Ao atualizar o fato cristão, o filme problematiza o discurso milenar e que ainda rege multidões, mas que não é questionado ou reinterpretado. Verifica assim, a atualidade e a atemporalidade do acontecimento.
Jésus nasce, e nas cenas com o bebê, a forte presença da natureza aparece. Os bichos que pertenceriam à manjedoura e o banho na água, nus, é exemplo disso. A referência aos apóstolos aparece na cena em que Jésus, já criança, brinca com os coleguinhas e os renomeia com nomes de Pedro e Tiago. O menino diz “Eu sou aquele que é!”, e corre para cuidar “dos assuntos de seu Pai”, fugindo de Joseph.
Marie fuma um cigarro e pinta os lábios de vermelho no seu carro, depois de encontrar Gabriel e ele proferir a saudação que dá nome ao filme: “Eu vos saúdo, Maria!”. O buraco negro que forma sua boca encarnada encerra a obra.
O filme, que em 1985, causou grande polêmica por tratar de forma diferenciada a temática religiosa, tão bem resguardada sob o manto sacro e purista, teve o roteiro e direção do renomado cineasta francês, Jean-Luc Godard, mas é uma produção de três países ( França, Reino Unido e Suíça). No Brasil, a censura da época, proibiu a exibição por compreender que o enredo ofendia ás crenças católicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário