sexta-feira, 27 de agosto de 2010

TRAINSPOTTING - Por outras águas, correntezas prazerosas que espedaçam barcos nas pedras

Por Sâmila Braga


É ao som de “Deep Blue Day” que acontece um dos ápices da trama. Renton protagoniza a cena de nojo-encantamento, paralelo traçado com o universo onírico das drogas. É como se o banheiro fétido, o vaso cheio, compondo o cenário de isolamento, horror, podridão, fosse a situação de necessidade da droga. A metáfora aflora, quando o jovem em estado de total torpor, mergulha privada adentro em busca da substância encapsulada. A cena que pareceria fake, não soa assim. O mergulho em águas profundas, azuis, cristalinas é levante de prazer e excitação.


Do mesmo diretor de Quem quer ser um milionário, Trainspotting ilumina o afundar nas drogas da forma menos conservadora que os anos 90 precisava. Marco do cinema, e consecutivamente de uma geração, o filme apresenta uma versão distinta das anteriores, permeadas de moralismo. Etimologicamente, o termo que dá nome ao filme significa para os ingleses uma brincadeira de jovens. Na Inglaterra, grupos de amigos competiam nas estações anotando horários das chegadas dos trens. Em seguida trocavam essas anotações. Nesse sentido, não há nenhuma relação direta com os conflitos da trama central. No romance homônimo de John Hodge, a partir do qual a película foi inspirada, os laços de amizade do grupo de amigos, viciados em heroína, são mais evidenciados. Talvez parta dessa relação de juventude, companheirismo e vícios.


As vertigens são sensoriais. O expectador afunda junto com o personagem em cenas como a do tapete. A overdose se torna coletiva. O desespero da abstinência, que vem acompanhado das alucinações, incomoda, transporta, desola, inverte. Não somente o chão e o teto, como também, valores e a falta deles, o sofrimento e a ausência de sentimentos.


Monta-se em Trainspotting , o começo e fim na perspectiva de ciclo, no qual todos os elementos da lógica do cotidiano são negados a priori e reconhecidos e assumidos no final, então começo de tudo. Auge, amadurecimento, tomada de consciência. A partir do ponto fim_princípio , tudo que não se queria ter torna-se a busca motivadora. Símbolo da resistência perante o vício-prazer, o personagem segue a caminho da normalidade, acreditando que agora ela existirá. Pelo menos para ele.

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