sexta-feira, 8 de abril de 2011

O PAGADOR DE PROMESSAS - O mítico híbrido mostrado pela saga de um Zé do Burro

Por Sâmila Braga



Marcando o Cinema Novo, com ganas de quem quer destrinchar os conflitos culturais brasileiros, Anselmo Duarte dá vida a’O pagador de Promessas. Usando a saga de Zé do Burro, o diretor pontua as reapropriações religiosas que o povo trata de fazer, como quando a branca Santa Bárbara, é exaltada no terreiro de macumba como a Deusa Iansã, e faz curar o burrico do pobre Zé.


Um raio faz cair um galho que, por sua vez, sangra a cabeça de Nicolau, o burro. O dono, amigo que era do animal, corre a rezas, benzimentos e é só no terreiro que consegue a graça, ao prometer a Santa Bárbara, Iansã, que se o bicho ficasse bom, andaria sete léguas com uma cruz às costas, e além disso, distribuiria suas terras aos que de terra carecem. O intuito era entregar seus agradecimentos pessoalmente no templo que batizaram com o nome da santa-divindade, a igreja de Santa Bárbara, em Salvador.


Chuva e sol, calos nas costas e nos pés, e a lamúria da esposa não desvanecem a fé de Zé. O moço consegue chegar a igreja, que pela noite, se encontra fechada. Tem de dormir ali mesmo até o amanhecer. A mulher, zangando-se da teimosia do marido, engraça-se com um larápio que puxa conversa com o casal. Passa a noite com ele num quarto de pousada, apoiando seu arrependimento na inocência do marido.


A manhã e os olhares comentosos das beatas acordam um Zé que dorme sobre a cruz de pau. O padre escuta de pronto a história do homem, e ao tomar conhecimento da promessa, a acha presunçosa e descabida. Ora, como poderia um homem querer imitar o filho de Deus para salvar um bicho, um burro ainda por cima? Esquecendo que Jesus Cristo montou um burro, o padre desdenha o pagador de juramento, e não o deixa entrar na igreja. Ainda mais por que a promessa foi feita, não sob o manto da Santa igreja Católica, e sim sob os coloridos rodopiares do Candomblé.


Zé tenta persuadir o pároco, argumentando que a fé é a mesma e que a graça fora alcançada. O diálogo todo se passa na gigante escadaria da igreja. Em certos momentos o cátedra se posta ao lado do fiel, ouvindo-lhe atentamente. Em outros tantos, lhe grita as verdades sagradas e lhe aponta sua desobediência, degraus acima, impondo-lhe a hierarquia que a Igreja tão bem sabe ensinar.


Em outra cena, água em bacias e muitas baianas de saias rodadas e colares de contas vão expulsando da escadaria o Zé, que se apóia na cruz, esperando o padre decidir-se por deixá-lo entrar. É a lavagem dos degraus que acontece em data anual, homenageando a santa.


A notícia se espalha. A imprensa, representada pelo jornaleco dali, aparece para entrevistar Zé. Na conversa que o jornalista tem com seu editor, fica clara a crítica do filme a mídia. “Não queremos reportagem bem feita, queremos reportagem que venda, entendeu?”, intima o editor ao repórter, indicando-lhe que recorra a imaginação. Essa imagem é reforçada na cena em que Zé do burro conversa com o policial, e esse, diz que o padre vai ter de abrir as portas da igreja, pois “quem não tem medo da imprensa?”.


Com as proporções que toma, o assunto vira conversa do monsenhor arcebispo. A igreja não quer dobrar-se, ao passo que sugere ao devoto que abandone as influências que teve do demônio e desista da tal promessa indigna. Diante da “tolerância cristã”, Zé não renega a sua jura, e reforça que fez a promessa à santa e não ao monsenhor. Assim, ele não teria direito de liberá-lo de coisa nenhuma.


Um conflito se inicia, e um tiro ceifa a vida de Zé. O fim da película não poderia ser mais cristão. Capoeiristas atam o corpo do homem à mesma cruz, que carregou por longo caminho, e o levam ao altar de Santa Bárbara. O povo se dissipa e a mulher termina desolada naquela larga escadaria. Agora, longe de casa, sem fé e sem o seu homem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário