sexta-feira, 10 de setembro de 2010

GRANDE SERTÃO VEREDAS – Infinito e universal seguem se derramando sob os pés que lhe sacodem a poeira e os sentimentos

Por Sâmila Braga





E foi sob a direção de Geraldo e Renato dos Santos Pereira que a obra de Guimarães Rosa passou para a película pela primeira vez. Com uma fotografia peculiar para a época e a narração do personagem principal, RIobaldo, o sertão se faz “do tamanho do mundo”. É nesse espaço, sempre marginalizado pelos costumes agrários e atrasados, que a exemplo das páginas de Rosa, o filme exalta o ecossistema. Veredas e chapadões, que pegam pedaço da Bahia, seguem pelas Minas Gerais e findam no norte e nordeste de Goiás.


Nas primeiras cenas, depois de contar um bocado da sua história, Riobaldo se veste de narrador. “O sertão é do tamanho do mundo... Sertão é o sozinho... é dentro da gente.... é sem lugar”. A partir desses aforismos e da beleza seca de cenas, em que tem o sertão sob as cavalgadas, Riobaldo prepara o expectador para apresentar cada personagem, narrar as pelejas entre jagunços, e pôr as vistas as medidas de honra do sertão.


Exemplo de procedimento da ordem sertaneja é visto na cena em que Zé Bebedo diz a Riobaldo que nunca se sente em cadeira de costas para a porta.


Amor sertanejo, platônico

Escrito em 1956, e só filmado pela produtora Vera Cruz em 1965, Grande Sertão: Veredas, trata do universal pelo regionalismo. Riobaldo, o Urutu-Branco, é o narrador e protagonista da trama. Num épico de guerras e amor, o personagem principal se apaixona pelo colega jagunço, Diadorim.


A impossibilidade de concretização atordoa Riobaldo e dá o tom platônico ao romance. Diadorim é ferido em confronto. Ao investigar o ferimento, Riobaldo descobre que o filho do chefe do bando, por quem está apaixonado, é na verdade uma mulher.


Nas cenas em que Diadorim dialoga, seja com seu pai ou com Riobaldo, há sempre o desejo expresso por eles de abandono daquele papel que ela assume, travestindo-se de jagunço. Os homens que a amam e conhecem seu segredo, querem vê-la caracterizada de “mulher”. Mesmo posta à imagem rude, roupas de couro, em meio a poeira e aos trabalhos do sertão marmanjo, Diadorim não deixa de atrair o desejo de Riobaldo. O que se coloca aí como intrigante, o instinto vencendo as aparências. Nas falas e ações, ela exige igualdade e não se submete a fragilidade que dizem pertencer ao feminino.


As batalhas travadas, o fim do que não foi

Como num western do sertão mineiro, a rudeza dos cabras se mostra nas batalhas que sucedem. As traições levam a combates. Num primeiro momento, Joca Ramiro lidera um bando de jagunços, ao qual Riobaldo se junta. Tendo como platéia a vegetação sertaneja, o grupo enfrenta os soldados do governo conduzidos por Zé Bebelo. Apreendido e julgado pelo grupo de Ramiro, Bebelo tem liberdade em troca da promessa de ir embora para Goiás. Depois disso, Hermógenes e Ricardão, escondidos do seu próprio grupo, propõem a ele trair o grupo e dominar o sertão sob sua chefia. Bebelo passa os brios na cara de ambos e vai embora sem aceitar.


Num segundo momento, após o assassinato de Joca Ramiro por Hermógenes, Bebelo volta a comandar os jagunços daquele que o libertou, junto de Riobaldo e Diadorim. Depois de fazer pacto com o Demônio numa noite de encruzilhada, Riobaldo mata Bebelo e se faz líder do grupo. Seguem para vingar a morte de Ramiro. Numa sacada de facas, no cotejo final, entre Diadorim e Hermógenes, ambos morrem.


Desolado, Riobaldo vai pra longe, pro “fundo do sertão... esses Gerais, as lonjuras...”, fugindo dessa vida de luta e guerras que tiraram sua quietude e sua amada Diadorim. O filme não mostra o final que o livro prepara, o casamento de Riobaldo com a mulher que sempre amou, Otacília.


“Furei o sertão. Sertão é isso, você empurra pra trás, mas ele volta a rodear o senhor pelos lados”. A ideia de infinitude que Riobaldo coloca no inicio do filme, pode se apresentar mesmo nessa reconstrução da vida, expresso nas lembranças que sempre hão de acompanhá-lo.


Se a priori, a natureza se encarregou de forjar o sertão: veredas, Guimarães Rosa reconstruiu esse mesmo sertão em prosa e sentimento, usando a linguagem para fazer brotar na imaginação do leitor essas terras caipiras. A tarefa de passar pelo menos parte das 600 páginas de venturas agrestes ao expectador foi cumprida pelo filme de mesmo nome, que deu o tom não de grande, mas de infinito sertão.

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