Por Sâmila Braga
Firmino ama Naína, mas se atrai por Cota, que ama Aruã, que ama Naína, que também ama Aruã. É esse emaranhado conflituoso de relações que impulsiona e culmina no Barravento. O mar como gerenciador leva à aldeia as cobiças de Iemanjá. Aruã é da deusa das águas e de nenhuma outra mulher. Desejos desrespeitados, aldeia castigada. O não assentimento à essa lógica imputa medo. A película se desenvolve a partir da indagação da deusa_mar, mas também com uma narrativa construída sobre essa mesma deusa. Seria possível enfrentar o patrão_opressor, dono da rede ou “o direito do homem pobre é o trabalho” como é levantado em uma das cenas? Não seguir a tradição, afixada pela deusa das águas há gerações e bater de frente com Janaína poderia trazer conseqüências? Tais questões norteiam o primeiro longa-metragem de Glauber, lançado em 1962.
O preto e branco até poderia tentar homogeneizar a mistura. Não conseguiria. Aquilo que Glauber quebra na trama de Barravento também reforça o encantamento do misticismo e das vivências afro-brasileiras. Rodas de samba, capoeira, macumba, ritos, sacrifícios. Elementos culturais, que surgem para contemplar a nova realidade do negro no Brasil, são utilizados para tecer a narrativa. Expressão afro-brasileira à exploração e marginalização.
Ao mesmo tempo, o diretor apresenta o misticismo como forma alienadora e corrente cerceadora da luta popular subversiva. A principio, o romance que seria dirigido pelo amigo, Luís Paulino, ganha asas de revolução. A mão glauberiana transforma Barravento, como tudo aquilo que toca, em arte crítica, cinema novo.
Firmino, o Exu personificado por Antônio Pitanga, figura mítica afro-brasileira, anuncia os desejos já escritos dos deuses-orixás. Aos pescadores, cabe então apenas conformar-se e entregar-se às vontades de Janaina, rainha das ondas. Glauber parte do mito para o seu próprio enforcamento. A cultura popular é encarada na obra, não somente como alienação, como também instrumento de resistência. A crença, controladora dos mais distintos aspectos da vida da aldeia, além de desencadear um modo de vida próprio, se apresenta como incultura de sobrevivência. Amor, vida e meio social rasgam as relações - tal como estavam pontificadas - no ápice que dá nome ao filme. O Barravento. Aruã desafia as forças sobrenaturais quando sobrevive ao despacho de Firmino, quando se entrega à Cota às vistas de sua mãe do mar e quando foge com Naína.
É o cinema mostrando, pela década do romantismo revolucionário, que pode reproduzir, contestar e mostrar as opressões do sistema. Como disse Jean-Claude Bernardet, em 1963: “Esse amor à vida é raro no cinema brasileiro (...)”. E parece que ainda hoje, continua sendo escasso. Mais filmes como os de Glauber.
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